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Falta inédita de público na Olimpíada de Tóquio coloca em xeque pilar dos jogos desde a antiguidade

. | postado em 26/07/2021

Publicado em 26 de julho de 2021

Lamartine DaCosta

Professor at UERJ

 

Além de segredos guardados a sete chaves, um elemento nada secundário diferenciará a cerimônia de abertura da Olimpíada de 2021, às 8h (horário de Brasília) desta sexta-feira, no Estádio Olímpico de Tóquio, de todas as que a antecederam: a ausência de público. Desde Atenas-1896, a primeira edição da era moderna, quando uma multidão estimada em 60 mil pessoas se misturou à famila real da Grécia no estádio Panatenaico para inaugurar o evento idealizado pelo barão de Coubertin, as Olimpíadas seguiam a tradição dos Jogos da Antiguidade, segundo a qual a audiência e esportistas eram elementos indissociáveis.

 

No Japão, o avanço da pandemia da Covid-19 levou ao fechamento de estádios e à orientação das autoridades para que o público evite até as provas de rua, como a maratona. Será a primeira Olimpíada sem torcida, interrompendo uma série histórica de números cada vez mais superlativos. Desde os 312 mil espectadores que acompanharam os Jogos de Estocolmo em 1912 até os 6,2 milhões que assistiram à Rio-2016, a multidão envolvida presencialmente nas Olimpíadas saltou algumas vezes de patamar, com destaque para a década de 1960, em meio à reconstrução pós-II Guerra Mundial, e para os anos 1990, ao fim da Guerra Fria. O levantamento foi realizado pelo GLOBO com base no número de ingressos vendidos em cada edição.

 

Pesquisadores e historiadores têm, hoje, mais perguntas do que respostas sobre desdobramentos da falta de torcida. Há curiosidade sobre os "truques" da organização para disfarçar o vazio nas arquibancas — o que pode incluir música ambiente e até tapumes estilizados — e também sobre o impacto na performance dos atletas, que tende a variar de acordo com a modalidade Falta inédita de público na Olimpíada de Tóquio coloca em xeque pilar dos Jogos desde a antiguidadee até o perfil psicológico de cada um. A certeza que já emerge é que a Olimpíada de 2021, apelidada como "Jogos da reconstrução", já começa com a missão de juntar as peças de um tripé partido.

 

— O esporte nasce na Grécia antiga não como mera atividade física, mas como ritual. A maratona talvez seja o principal exemplo, com sua dimensão trágica (a prova se inspira na lenda do mensageiro Fidípedes, que teria morrido após correr 40km e repassar um plano de guerra). Ela é reproduzida por atletas quando eles entram no estádio, nos metros finais, e são ovacionados — analisa Lamartine da Costa, membro da Sociedade Internacional de Historiadores Olímpicos (ISOH) — Com o público, o sacríficio do atleta faz sentido. No teatro, o clímax do ator se dá em sintonia com a plateia. No esporte olímpico, o grande atleta também acontece em função do público. Nunca se desfez essa conexão antes.

 

Lamartine cita as cenas icônicas da maratonista suíça Gabriela Andersen-Scheiss, que cambaleou até a linha de chegada em Los Angeles-1984 à beira da exaustão, e o do brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima, sorridente e fazendo um "aviãozinho" em Atenas-2004, como exemplos de episódios que jamais teriam a mesma dimensão — e talvez sequer fossem realizáveis — sem o calor do público. No caso de Vanderlei, o público teve influência ainda mais direta nos quilômetros finais quando o brasileiro foi empurrado para fora da pista pelo padre irlandês Cornelius Horan — e jogado de volta pelo espectador grego Polyvios Kossivas. Vanderlei, que liderava, acabou sendo bronze

 

Entre os acontecimentos olímpicos notáveis lembrados por sua relação com o público, o mais antigo talvez seja o desempenho de Jesse Owens nos Jogos de Berlim-1936, usados como plataforma do regime nazista pelo ditador Adolf Hitler. As quatro medalhas de ouro de Owens, atleta negro, soaram como derrota a Hitler, que assistiu a tudo da tribuna do Estádio Olímpico de Berlim. Já a idolatria de Owens entre os alemães, com registros de pedidos de autógrafo e de crianças querendo correr como o velocista americano, foi uma breve esperança de freio às perseguições étnicas, soterrada pela II Guerra Mundial três anos depois.

 

Em 1980, o mosaico cujo movimento criava lágrimas no urso Misha, mascote dos Jogos de Moscou, trouxe as arquibancadas para o protagonismo da cerimônia encerramento. A cena ocorreu no auge da Guerra Fria e em meio ao boicote americano, que receberia o troco soviético em Los Angeles, quatro anos depois.

 

A pesquisadora Katia Rubio, professora da Faculdade de Educação da USP e especialista em psicologia do esporte, lembra que a separação entre atletas e público se tornou cada vez maior ao longo dos anos, especialmente depois do atentado à delegação israelense em Munique-1972, que tornou a Vila Olímpica mais isolada. Ela aponta, por outro lado, ligações entre a presença de torcida e a performance em modalidades do atletismo, como salto triplo e arremesso, em que se tornou comum a prática de chamar palmas do público para "aquecer" o atleta.

 

Segundo Rubio, a progressiva associação de atletas olímpicos a seus países — a partir de 1920, foi vetada a inscrição individual nas Olimpíadas, desvinculada de comitês olímpicos — levou a uma ressignificação do papel do público, tornando-se mais frequentes as posturas nacionalistas. Como exemplo, ela lembra as vaias da torcida brasileira no Estádio Nilton Santos ao francês Renaud Lavillenie no salto com vara em 2016, na disputa contra Thiago Braz, que levou o ouro

 

— A vinculação maior entre atletas e países ocorre após a I Guerra, quando os alemães foram desconvidados para os Jogos da Antuérpia. E o auge vem na Guerra Fria, com os boicotes. Com a facilidade de deslocamento no mundo atual, as torcidas se tornaram menos locais, mas ainda assim continua sendo um ato não consciente, apaixonado. No Rio, cruzou-se uma linha muito tênue entre torcida e desrespeito ao adversário, o que não é comum na cultura olímpica, na qual entende-se que, sem o adversário, não há competição — afirma.

 

A pesquisadora também observa que, embora alguns atletas sintam-se retraídos com torcida contra, outros se motivam. O impacto da falta de público no desempenho passa, portanto, por aspectos individuais, bem como por características de cada modalidade. Modalidades como o tiro esportivo e o tênis, por exemplo, exigem silêncio durante as ações dos atletas.

 

Para os especialistas na história dos Jogos, a presença de público também é fundamental para o que se convencionou chamar de "espírito olímpico". Lamartine da Costa diz que os Jogos da antiguidade eram responsáveis por "criar a paz" entre as cidades-Estado da Grécia, que declaravam cessar-fogo em seus conflitos para permitir o livre deslocamento e confraternização de atletas e também de torcedores. Alberto Murray, advogado formado em estudos olímpicos, corrobora esta visão.

— A essência do movimento olímpico vai muito além do campo esportivo, ela acontece também fora das instalações, no encontro entre pessoas. Basta lembrar que na Alemanha de 1936, apesar de algumas ações como vetos a judeus na delegação alemã, os relatos são de integração sem quaisquer problemas entre atletas e com o público. Para o atleta em Tóquio, não ter torcida é mais um fator que exigirá preparação mental — projeta.

Fonte: Bernardo Mello | O GLOBO – RIO DE JANEIRO – 24/07/2021 – ESPORTES – PAG. 7

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